- XIAHE
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Xiahe tem uma reputação de ser o “mais Tibete fora do Tibete”. De Mosteiros budistas a nómadas Tibetanos, há muito por conhecer neste cantinho da China.
O AUTOCARRO QUE LIGA O ISLÃO AO BUDISMO
Chegar a Xiahe ainda é um desafio, apesar de os acessos estarem cada vez mais desenvolvidos, e de estar a ser feita uma via-rápida e uma linha de comboios rápidos que em breve chegarão a esta zona. Mas por enquanto… a estação mais próxima é a de Lanzhou, a cerca de 230kms da cidade. Eu fui no comboio nocturno que liga as duas estações, Xi’an, capital da província Shaanxi, a Lanzhou, capital da província Gansu. Cheguei a Lanzhou logo pela manhãzinha, cerca das 7h, e meti-me logo num táxi para o terminal rodoviário, que ainda tenho muito caminho pela frente.
A taxista que me apanhou era muito simpática e divertida! Ainda são 30 a 40 minutos de táxi entre estações. Ia-me apontando alguns dos sítios mais bonitos da cidade. O que mais me saltou à vista, foram as inúmeras mesquitas que se viam pela cidade, com as suas luas douradas erguidas para o céu. Em redor, altos prédios de uma arquitectura quase soviética, e em baixo, nas “garagens”, os açougueiros talham carnes halal.
Chego à estação a tempo de apanhar o segundo autocarro do dia, que parte às 8h30. São cerca de 3h30 de caminho até Xiahe, uma viagem mais rápida que o meu corpo se aguenta para aclimatizar à altitude… Mal saímos de Lanzhou, o caminho começa sempre a subir, a paisagem desertifica-se, e começamos a ficar cercados de montanhas atrás de montanhas. Lindo!!!
No autocarro seguem mais dois casais de turistas: um holandês, um pouco mais novos que eu, e um francês, com idade para serem meus pais. É com estes que começo a trocar palavras, na única paragem de descanso que o autocarro faz.
A chegada a Xiahe é algo surpreendente: depois de tanta estrada pontuada pelas mesquitas, chegamos a esta pequena vila inundada de monges budistas com rotinas mundanas. O terminal rodoviário é no centro da parte nova da vila, num parqueamento de terra batida, onde há saída dezenas de taxis verdes aguardam ansiosamente passageiros que viajam por cêntimos. Divido o meu taxi com o casal francês, e o percurso de 2kms custa não mais que 2¥ apenas, qualquer coisa como 25 cêntimos.
O alojamento transborda cultura tibetana, e somos recebidos pomposamente pela proprietária, uma holandesa que há 15 anos trocou o seu trabalho como líder de viagens, por um tibetano. Desde então, começaram este negócio de receber hóspedes estrangeiros em Xiahe, que é conhecida acima de tudo pelo Mosteiro de Labrang – o maior mosteiro budista-tibetano fora do Tibete – mas também pelas pastagens ainda habitadas por nómadas tibetanos, pelos iaques, e pelo comércio de lacticínios.
O MOSTEIRO LABRANG E A KORA
A kora é uma peregrinação feita pelos budistas, normalmente num roteiro circular. Deve ser feita sempre no sentido dos ponteiros do relógio, quer em torno de uma stupa, de um templo, de um “deus de montanha” (um pequeno monumento feito pelos locais, no ponto mais alto da montanha, para trazer boas fortunas a todos os que habitam sob sua vigilância), ou de qualquer outro símbolo budista. As koras trazem bastantes benefícios, como apaziguar conflitos, curar doenças, traz boa sorte e fortuna, acalma a mente e traz felicidade, no geral. Aqui, em particular, muitos fazem também a kora com prostração completa, com movimentos como os das lagartas, deitando-se no chão, estendidos, e erguendo-se de seguida com as mãos em direcção aos céus. Esta é a kora mais completa, e aqui muitos são os peregrinos que a fazem, a toda a hora.
O Mosteiro Labrang tem pouco mais de 200 anos, e é altamente influenciado pelas culturas tibetanas e mongóis. Sempre foi um dos principais centros de estudos para os monges tibetanos, mas tem um passado sangrento, tendo sido atacado primeiro pelas forças muçulmanas de Ma Qi (1917), e posteriormente pelas tropas de Mao (1951). Tal como o resto do Tibete, todo o território passou a fazer parte da República Democrática da China, e desde então a opressão mantém-se, e infelizmente, tem vindo a ser cada vez mais notória nos anos mais recentes.
Apesar disso, o Mosteiro conta ainda com 2 a 3 mil monges residentes, e apesar de não haverem as festividades de outrora, a cultura budista ainda está bem presente, e o tibetano ainda se mantém como 1ª lingua oficial.
Há duas visitas guiadas ao mosteiro, todos os dias, por um monge que fala fluentemente o inglês. Eu fiz a visita da manhã, juntamente com os dois casais que vieram no mesmo autocarro que eu. O monge que nos mostra os templos, surpreende pois não só nos mostra o local e a sua história, mas abre muito o jogo sobre a vida budista e a procura do “eu” e da felicidade. Pelo meio, faz-nos algumas perguntas que são pontuadas por silêncios bastante desconfortáveis:
- O que é a felicidade?
- Quem sou eu?
- O que é o eu?
- Qual é o propósito da vida?
- O que me faz feliz?
- Se eu não sei o que é a felicidade, nem o que é o eu, como é que sei se sou feliz?
O monge termina a nossa visita, depois de nos mostrar pelo menos uns seis templos e escolas diferentes. São 11h30, e começa a oração do dia no templo principal, o qual podemos assistir, mas não podemos fotografar. Os monges aqui rezam e tocam os instrumentos tibetanos, num momento que é realmente inspirador.
Aparte destas visitas guiadas, as zonas circundantes ao templo de Labrang podem ser visitadas livremente. Apesar de não haverem restrições fotográficas, é algo que claramente incomoda tanto os monges como os peregrinos, por se verem um alvo de um turismo fácil e algo invasivo, que tem crescido acima de tudo nos anos recentes.
PLANALTOS TIBETANOS – AS “GRASSLANDS“
Combinei com o casal holandês fazermos uma visita às grasslands tibetanas. Contratámos um condutor que fala inglês, e rumamos em direcção a Dajiutan para explorar os planaltos.
No dia que cheguei eu sofri muito com os males da altitude (mesmo apesar de estar habituada), pois foi uma subida de quase 3000m em menos de 24h. Dores de cabeça fortíssimas, tonturas, muita fraqueza e enjoos constantes que me obrigaram a ficar na mesma altitude para aclimatizar… eu estava ansiosa por sair da cidade e explorar “a vida como ela é”, junto dos nómadas. Por isso para mim, este era um dos pontos altos da viagem!
Em conversa com o nosso condutor, falava-lhe das minhas viagens à Mongólia, e os olhos dele brilhavam – também ele vinha de familias nómadas, e originalmente eles eram da Mongólia (há muitos anos atrás). Ele identificava-se mais com a cultura mongol, do que com a “nova” cultura chinesa, e é fácil perceber porquê. A caminho, paramos numas montanhas para fazer uma pequena caminhada. O cenário é muito parecido com os que encontramos na Mongólia: campos infinitos, cheios de iaques e pequenas gers familiares, cercadas por montanhas nevadas no horizonte. Tudo muito bonito, mas uma ventania gelada que dificultava imenso a parte técnica da caminhada, e o proveito não era assim tão grande… Então refugiamo-nos em casa de uma familia que ali mora.
Os nómadas tibetanos agora são mais “semi-nómadas” – devido à imposição de novas regras chinesas, cada familia tem adjudicado um pedaço de terreno para os animais pastarem. No verão, vivem como nómadas, mas no inverno recolhem a casas simples, nesses terrenos, e aqui permanecem, fixos e mais resguardos. É nessa casa que somos recebidos por um casal, que curioso, nos oferecem comida e bebida com um enorme sorriso. A senhora preparou tsampa, um doce tradicional tibetano, feito com cevada, manteiga de iaque e chá, tudo amassado e preparado em bolinhas. Doce e rico em calorias, é um alimento tradicional destas paragens, por saciar e dar energia durante horas. Servem-nos também biscoitos e o tradicional chá tibetano (preparado com leite de iaque com um travo salgado). A mim sabe-me “pela vida”, pois faz-me sentir que estou na minha segunda casa, a Mongólia!
Depois de visitarmos a familia continuamos o nosso caminho até Dajiutan. Dajiutan é a cidade mais “deserta” que vi até hoje! Apenas quatro ruas a formarem um quadrado, com casinhas térreas todas iguais, de paredes amarelas e porta ao centro, com muitos e muitos fios de electricidade a cruzarem os telhados, esta cidade é o palco do maior mercado de verão aqui da área. Nessa altura, todos os nómadas descem a esta localidade, para vender os produtos que trabalharam o ano inteiro: lacticínios de iaque, carne, artesanatos. Mas hoje, pleno Abril e ainda a nevar, a cidade está deserta.
Almoçamos num pequeno café, onde a rapariga que nos serve trabalha com o filho às costas, enrolado nos tecidos do del (o casaco tradicional destas zonas, igual ao da Mongólia). Comemos todos uns noodles fritos com iaque que eram uma delicia, não só a melhor comida que já provei nesta viagem inteira, mas também uma das mais baratas, pois cada prato custa apenas 15¥, e dava para alimentar duas pessoas, seguramente…
Depois de almoço damos uma pequena volta, e aquela que é provavelmente a única criança, apareceu com uma mochila e uma arma de plástico, a “disparar” contra nós, entusiasmadíssimo por ver caras novas! A mim, entristece-me que o único brinquedo que ele tenha, é uma arma. Mas alegra-me ver o entusiasmo dele a interagir com estranhos, e começamos a correr todos juntos pela vila fora, enquanto ele ria às gargalhadas! Sem dúvida que a parte melhor das viagens pelo desconhecido são estas brincadeiras com os miúdos!!
Já pelo fim da tarde fazemos a viagem de volta. Infelizmente, as novas políticas chinesas não permitem a pernoita a estrangeiros nos planaltos, ou com as familias locais. Há locais designados e autorizados para tal, pela exorbitante quantia de 2000¥. Obrigada, mas fico-me pelo hotel familiar em Xiahe, e fico muito bem!
FUTURO INCERTO
Se por um lado adoro as paisagens chinesas, e a variadíssima cultura étnica que (ainda) é possível encontrar na China, por outro lado preocupa-me imenso esta coisa da invasão dos chineses Han por toda a China. As tradições estão claramente a perder-se, e as paisagens a mudar a uma velocidade avassaladora. Por todo o lado vemos auto-estradas a serem construídas, novas cidades que se erguem do nada, nómadas que viram sedentários urbanos, línguas esquecidas. Para mim, é imperativo viajar AGORA, enquanto ainda é possível saborear os diferentes tons da China.
Só em Xiahe, nos últimos 10 anos apareceram mais de 10.000 chineses Han, estão a construir uma via rápida, um comboio rápido. Há 10 anos demoravam-se pelo menos 15h a viajar de Lanzhou para Xiahe. Hoje, demoram-se 3h30. Brevemente, umas 2h, ou menos até. Haverão menos budistas? Mais turistas? Menos nómadas? Mais negócios?
O futuro não depende só dos locais, mas também de quem visita o local.
Aos que cá vêm, eu vos peço:
- respeitem a cultura local – não sejam evasivos com as fotografias, os locais são exóticos, mas não são “bichos do zoo”;
- respeitem o ambiente – já basta a poluição do trânsito, das obras, do sobre-povoamento;
- aproveitem – ao ritmo que as coisas andam, quem sabe se isto ainda existirá daqui a 10 anos?